Re: TEATRO
Enviado: segunda fev 09, 2009 9:37 am
Teatro Nacional de S. João - 6 a 12 de Fevereiro de 2009 às 21:30 (3ª a sábado) e 16h (domingo)
Oportunistas, jogadores compulsivos, cafeíno-dependentes, cowboys anacrónicos, gangsters, adúlteros incorrigíveis, falsários, criados endinheirados & outras criaturas virtuosas formam a fauna de O Café, a peça que o hiperactivo R. W. Fassbinder compôs após uma única leitura da comédia homónima de Carlo Goldoni. Na sequência da montagem da obra setecentista, encenada há um ano por Giorgio Barberio Corsetti, o TNSJ entregou a paráfrase livre de Fassbinder nas mãos de Nuno M Cardoso, que, num exercício da nossa academia informal, tratou de accionar o jogo simbiótico de vícios e iniquidades, dependências e perfídias, a que as personagens se entregam. Criado num regime de laboratório, assente em sucessivas improvisações quase até à data de estreia, O Café desdobra a voracidade pelo tempo que foi a de Fassbinder, cujo génio se encarregou de transpor Goldoni para um outro paradigma, fora do tempo histórico, onde a seu bel-prazer mistura ecos da sintaxe do barroco, imagens dos westerns e melodramas de Hollywood, e os câmbios de uma infernal máquina financeira.
O vício é um dos temas mais fortes, e está tão patente na voragem do jogo como no consumo de droga. O café é aqui uma droga – ou a droga. A viciação atinge e corrompe as próprias relações. Elas estão viciadas, ou são, de alguma forma, viciantes. Diz-se por vezes que há uma “química” entre pessoas. Aqui há um químico, uma substância que gera uma dependência nos relacionamentos e impede que as personagens se libertem. O que coíbe, por exemplo, Vittoria de se libertar de um marido incorrigível? Ou o que faz Placida correr atrás de um traste como Leander? Há uma outra coisa que me parece importante assinalar: a sobrevivência pós-perda total. Eugenio e Vittoria sobrevivem à perda de tudo, incluindo a perda dos brincos, que são descritos como “o que resta da nossa felicidade”. Todas estas criaturas são, à sua maneira, sobreviventes. Sobrevivem à falência afectiva, à falência das relações e do que socialmente as sustenta, à falência de todos os valores, pulverizados pelo vício e pelo jogo. Mesmo os que ganham – como Leander, que ganha apenas ilusoriamente – estão em falência absoluta. É uma liquidação total. O capitalismo aqui instaurado não serve para criar uma “sociedade feliz”, uma sociedade em que se evolui para um bem-estar comum ou para o bem-estar de quem quer que seja. Apenas produz sobreviventes.
Nuno M Cardoso
Excerto de “História universal da infâmia”, entrevista concedida a Pedro Sobrado. In Fassbinder-Café: [Programa]. Porto: Teatro Nacional São João, 2008.
Mais informações em http://www.tnsj.pt/home/espetaculo.php?intShowID=116
Estive na estreia, para os conhecedores e frequentadores de estilos mais electrónicos, esta peça conta com a participação de música ao vivo de Tatsumaki - http://www.myspace.com/tatsumakisound
Oportunistas, jogadores compulsivos, cafeíno-dependentes, cowboys anacrónicos, gangsters, adúlteros incorrigíveis, falsários, criados endinheirados & outras criaturas virtuosas formam a fauna de O Café, a peça que o hiperactivo R. W. Fassbinder compôs após uma única leitura da comédia homónima de Carlo Goldoni. Na sequência da montagem da obra setecentista, encenada há um ano por Giorgio Barberio Corsetti, o TNSJ entregou a paráfrase livre de Fassbinder nas mãos de Nuno M Cardoso, que, num exercício da nossa academia informal, tratou de accionar o jogo simbiótico de vícios e iniquidades, dependências e perfídias, a que as personagens se entregam. Criado num regime de laboratório, assente em sucessivas improvisações quase até à data de estreia, O Café desdobra a voracidade pelo tempo que foi a de Fassbinder, cujo génio se encarregou de transpor Goldoni para um outro paradigma, fora do tempo histórico, onde a seu bel-prazer mistura ecos da sintaxe do barroco, imagens dos westerns e melodramas de Hollywood, e os câmbios de uma infernal máquina financeira.
O vício é um dos temas mais fortes, e está tão patente na voragem do jogo como no consumo de droga. O café é aqui uma droga – ou a droga. A viciação atinge e corrompe as próprias relações. Elas estão viciadas, ou são, de alguma forma, viciantes. Diz-se por vezes que há uma “química” entre pessoas. Aqui há um químico, uma substância que gera uma dependência nos relacionamentos e impede que as personagens se libertem. O que coíbe, por exemplo, Vittoria de se libertar de um marido incorrigível? Ou o que faz Placida correr atrás de um traste como Leander? Há uma outra coisa que me parece importante assinalar: a sobrevivência pós-perda total. Eugenio e Vittoria sobrevivem à perda de tudo, incluindo a perda dos brincos, que são descritos como “o que resta da nossa felicidade”. Todas estas criaturas são, à sua maneira, sobreviventes. Sobrevivem à falência afectiva, à falência das relações e do que socialmente as sustenta, à falência de todos os valores, pulverizados pelo vício e pelo jogo. Mesmo os que ganham – como Leander, que ganha apenas ilusoriamente – estão em falência absoluta. É uma liquidação total. O capitalismo aqui instaurado não serve para criar uma “sociedade feliz”, uma sociedade em que se evolui para um bem-estar comum ou para o bem-estar de quem quer que seja. Apenas produz sobreviventes.
Nuno M Cardoso
Excerto de “História universal da infâmia”, entrevista concedida a Pedro Sobrado. In Fassbinder-Café: [Programa]. Porto: Teatro Nacional São João, 2008.
Mais informações em http://www.tnsj.pt/home/espetaculo.php?intShowID=116
Estive na estreia, para os conhecedores e frequentadores de estilos mais electrónicos, esta peça conta com a participação de música ao vivo de Tatsumaki - http://www.myspace.com/tatsumakisound